Arte rupestre no sítio arqueológico da Cueva de Las Manos, Argentina.
Por Laura Monte Serrat Barbosa. Pedagoga, psicopedagoga, e mestre em Educação.
Bem no início, éramos animais peludos que conseguiam se sustentar sobre duas pernas; mas já possuíamos um tipo de inteligência prática, pois usávamos o que a natureza nos oferecia para tornar nossos espaços um pouco mais confortáveis e para alimentar nossos filhotes. Nossas camas eram feitas de galhos e folhas; nossos talheres eram galhos finos com os quais afundávamos nos formigueiros para trazer as formigas, a fim de alimentar os filhos. Mais tarde, as mãos liberadas do ato de caminhar possibilitaram, também, fazer outras coisas; com isso, produzimos conexões diferenciadas que nos levaram a não somente utilizar os elementos da natureza para buscar a sobrevivência, como também começar a transformar esses elementos em instrumentos. Assim, nossa capacidade de criar e de memorizar a criação, como elementos para novas possibilidades, foi oportunizando uma transformação biológica não somente cerebral, mas em nosso corpo todo.
Nessa caminhada de milhões de anos, a laringe passou a fazer parte da nossa constituição biológica somente há poucos milhares. Foi esse órgão que nos possibilitou criar a linguagem produzida com a articulação dos sons, para além do linguajar, a partir do qual nos comunicávamos com sons guturais e manifestações emocionais expressas pela aproximação corporal.
Isso quer dizer que, somente de 60 mil anos para cá, constituímos nossa possibilidade de falar para comunicar e, a partir daí, iniciar a construção cultural humana e nossa capacidade de simbolizar, ou seja, de colocar algo no lugar da ausência: palavras, por exemplo, com as quais nomeamos construções que conservam a memória, e manifestações como vestimentas, músicas, danças e tantas outras, potencializadas pela nossa possibilidade de comunicação verbal. Assim, nossa inteligência prática ampliou-se e fomos desenvolvendo a capacidade de raciocinar, de inventar, de pensar, de compartilhar ideias, sentimentos, ações e produções, além de muito mais.
Nessa trilha, em diferentes espaços de nosso planeta, há apenas cinco mil anos aproximadamente, foi-se criando a necessidade de construir uma forma mais complexa de simbolizar, registrar e comunicar-se – a Linguagem Escrita.
Muita história rolou para chegarmos até o momento atual, no qual existe uma instituição para ensinar os representantes de nossa espécie a ler e a escrever – a Escola.
A partir de muitas pesquisas, a ciência descobriu que cada um de nós reproduz, em sua história, o caminho percorrido pela espécie humana para chegar a realizar a forma mais complexa de simbolização – a leitura e a escrita. Num espaço bem menor de tempo, as transformações vão também fazendo parte da nossa estrutura física e mental.
No entanto, embora esse caminho tenha sido encurtado no tempo, não deve prescindir das relações, das descobertas de si, do outro, do mundo. Conversar, dialogar, explorar o mundo com os olhos, com os ouvidos, com as mãos, com o olfato, com o paladar e com a emoção fazem parte dessa aprendizagem. Sentir o vento e o calor, comparar o barulho e o silêncio, observar os movimentos e as calmarias, assistir e agir, experimentar e vivenciar são ações necessárias. Ler e escrever o mundo antecede a leitura das letras e sua escrita, pois ler e escrever não se trata de decifrar combinações de letras, mas de ações para compreender e expressar o que vivemos.
Também se descobriu que essa aprendizagem acontece em tempos diferentes, dependendo das interações que as pessoas tiveram na vida até chegar ao momento da utilização da leitura e da escrita. Por isso, alguns já chegam à escola sabendo ler e escrever; outros apresentam condições iniciais; mas há quem precise desenvolver funções anteriores, necessárias para essa aprendizagem, que ainda estão muito embrionárias.
Nesse sentido, há maneiras distintas de pensar sobre esse desenvolvimento: algumas têm como base o treinamento, de fora para dentro, apostando na repetição, sem contar com a motivação e com o envolvimento de quem está ali para aprender; outras acreditam que é só deixar as pessoas em contato com material escrito que, automaticamente, elas vão se interessar e logo estarão lendo e escrevendo; há também a forma que acredita numa combinação dessas duas. Aqueles que já aprenderam a utilizar a leitura e a escrita como instrumento para possibilitar outras aprendizagens aproximam os que ainda não aprenderam, promovendo situações de envolvimento, que mobilizam o interesse, que permitem o entendimento da necessidade desse instrumento em nossa cultura, que promovem a compreensão da função social da leitura e da escrita, assim como da riqueza que ela traz para aquele que pode se aventurar em sua complexidade.
Essa é uma tarefa caminho, e não apenas uma tarefa resultado. Muitas vezes, treinar traz o resultado como aparente aprendizagem, mas não necessariamente como aprendizagem instrumental para todas as situações da vida; por outro lado, deixar ao bel prazer nem sempre tira as pessoas do conforto a ponto de terem vontade de aprender. Provocar, instigar, perguntar e apresentar várias possibilidades são, sem dúvida, ações ligadas a um processo de aprender que envolve os sujeitos que aprendem, as quais constituem o desejo de aprender. Este é combustível permanente para todas as aprendizagens que estarão por vir, para as quais será necessário ter a leitura e a escrita como ferramenta.
Aqui na Escola Terra Firme acreditamos que apropriar-se da leitura e da escrita, ou seja, tornar a linguagem escrita própria, sua, possibilita aprendizagens não apenas conceituais, mas também relacionais, de autoconhecimento, de busca de soluções para os problemas que o mundo apresenta hoje. É uma ferramenta cuja aprendizagem exige colocar o motor do pensamento em ação e exige a realização de relações entre o que se pensa, o que se sente e o que se faz. Significa tomar para si uma ferramenta, a fim de tornar-se autor de sua própria aprendizagem. Para isso, treinar é muito pouco e deixar acontecer é uma ingenuidade.
O que é preciso é aprender/ensinar como um processo, um caminho no qual as questões aparecem e as pessoas vão sendo provocadas a pensar sobre hipóteses, a confirmá-las, a negá-las e a discuti-las; a conhecer o que já se sabe, o que já foi construído e a atualizar para o momento.
A linguagem escrita é dinâmica, assim como os processos de apropriação; ela depende do grupo constituído para aprender junto, do momento histórico, das expectativas, dos envolvimentos, do acompanhamento dos adultos e de tantas outras coisas que fazem parte dos contextos nos quais as pessoas que aprendem estão situadas.
Por isso, na Escola Terra Firme, consideramos importante entender a aprendizagem como aprendência; ou seja, como um percurso histórico que envolve desde nossos ancestrais a nós próprios como personagens dessa trilha, tirando-nos do lugar de expectadores e de cobradores, colocando-nos no lugar de participantes ativos, responsáveis pelo encantamento e pela seriedade que é aprender a ler e a escrever, a tomar posse de uma ferramenta a ser usada para aprender a vida!
